É Podcast, é Portal 📰
Publicado em 4 de junho de 2025
Na madrugada desta quarta-feira (4), faleceu em São Raimundo Nonato, no interior do Piauí, a arqueóloga Niède Guidon, aos 92 anos. Reconhecida por sua atuação incansável na preservação do patrimônio arqueológico brasileiro, especialmente na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, Niède deixa um legado científico e cultural que atravessa gerações. A causa da morte não foi informada.
Ao longo de décadas, ela foi uma das principais vozes da arqueologia brasileira, desafiando paradigmas e colocando o Brasil no centro de debates internacionais sobre o povoamento das Américas. Seus estudos no Piauí trouxeram à tona evidências de que a presença humana no continente pode ser muito mais antiga do que se supunha — algo em torno de 50 mil anos ou mais, segundo as descobertas lideradas por ela.
O Museu da Natureza publicou uma nota em reconhecimento à trajetória notável de Niède, ressaltando seu papel fundamental na pesquisa, valorização e proteção do patrimônio histórico da Serra da Capivara. Foi nessa região, onde ela escolheu viver e trabalhar, que a arqueóloga coordenou escavações cruciais para o entendimento da presença humana em solo americano.
Natural de Jaú (SP), nascida em 12 de março de 1933, Niède possuía dupla nacionalidade — brasileira e francesa. Graduou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959, e logo seguiu para a França, onde se especializou em Arqueologia Pré-Histórica na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Seu doutorado, concluído em 1975, teve como foco as pinturas rupestres da região de Várzea Grande, no Piauí, sob orientação do renomado antropólogo André Leroi-Gourhan.
Mais do que uma cientista, Niède foi uma defensora incansável da valorização da ciência como instrumento de transformação social. Criadora do Museu do Homem Americano, atuou durante anos para garantir recursos e estrutura à Serra da Capivara, enfrentando com coragem o abandono do poder público e mobilizando apoio nacional e internacional.
Sua luta gerou frutos: milhares de pessoas da região foram impactadas diretamente pelo seu trabalho — seja por meio da educação, da geração de empregos ou da abertura de novos horizontes para a ciência e o turismo. A Serra da Capivara, graças a ela, se transformou em um dos mais relevantes sítios arqueológicos do planeta.
Em 2023, a Universidade Federal do Piauí (UFPI) concedeu a Niède Guidon o título de Doutora Honoris Causa — reconhecimento máximo da instituição — como forma de homenagear sua vida dedicada à pesquisa, ao ensino e à preservação cultural. A honraria celebrou, entre outras conquistas, a descoberta de mais de 800 sítios arqueológicos na região e os inúmeros vestígios de povos pré-históricos catalogados sob sua liderança.
As ideias defendidas por Guidon, como a possibilidade de o homem ter chegado às Américas por rotas alternativas vindas da África, chegaram a confrontar a visão predominante na arqueologia tradicional — que defende a migração pelo Estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, há cerca de 13 mil anos. Mesmo sob críticas, ela seguiu firme, fundamentando suas teses com rigor técnico e coragem intelectual.
Uma das homenagens mais simbólicas à arqueóloga veio em forma de descoberta científica. Em 2023, pesquisadores identificaram uma nova espécie de ave na Caatinga, batizada de Sakesphoroides niedeguidonae em sua homenagem. A ave, antes confundida com a choca-do-nordeste, revelou-se geneticamente distinta. Ao saber da homenagem, Niède respondeu emocionada: “Fico lisonjeada. Ele, assim como eu, gostou da Caatinga e escolheu ficar por aqui”.
Com sua partida, o Brasil perde uma de suas mentes mais brilhantes. Mas o legado de Niède Guidon permanece — não apenas nos registros científicos ou nas paredes pintadas pelos primeiros habitantes, mas também na história viva de um país que ainda precisa aprender a valorizar suas raízes mais profundas.
Fonte: Portal A10+